quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Uma conversa com Siegfried Zielinski


Entrevista com Siegfried Zielinski.
Por Eduarda Ribeiro. Realizada no dia 21 de Maio de 2010, na
Universität der Künste Berlin (UdK).




E. Ribeiro- Do que adianta trazer a arte de rua para um museu, se uma pessoa ainda pode ser presa ao fazer a sua arte na rua? Que voz está tentando calar quando isso acontece?

Zielinski- Isso não tem nada a ver com arte, isso é relativo à economia. É um problema de mercado, porque quando você coloca o grafite no museu, você quer fazer duas coisas: quer fazer daquilo um produto, criar algo que seja vendável e comprável. E lógico, muito próximo a isso, você quer aproveitar ao máximo essas “dimensões revolucionárias” para fazê-las mais suavemente consumíveis. Isso não é apenas com street art, isso é um fenômeno que pode ser observado principalmente no século XX.

O movimento Punk, por exemplo, no começo, acontecia em áreas industriais, decadentes e já nos anos 80 o Punk fazia parte do mundo da moda. No final dos anos 80, Vivienne Westwood estava fazendo uma linda moda estilo Punk e programas de tv trabalhavam com estratégias estéticas. Essas transformações acontecem mais e mais porque as pessoas querem vender moda, cinema, arte e qualquer coisa. Elas estão famintas, morrendo por algo que seja diferente das mesmas coisas que as pessoas têm todos os dias, daí, elas pegam algo e transformam em produto.

Desculpe por estar falando isso tudo, mas minha resposta vai no cerne da sua pergunta. Aqui mesmo na UdK, temos um departamento chamado wirtschafts und gesellschaftskommunikation que significa comunicação na economia e na sociedade e eles tem um área de estudos chamada estratégia, onde trabalham com esse tipo de coisa, pensam em como podem usar as teorias do situacionista Guy Debord e transformar isso num processo estratégico que dá suporte à economia consumista. Isso é exatamente o que permanece acontecendo com a arte de rua, desde Basquiat. Você dá drogas para eles e ele vão nos museus (risos).


E. Ribeiro- Para a maioria das pessoas, a Arte é algo precioso que fica em um lugar específico, longe das ruas. Ao realizarmos ações no espaço público, uma das reações mais comuns do público é confundir aquilo com publicidade, mesmo que não consiga identificar o produto. Por quê?

Zielinski- A arte na esfera pública não é possível. Ou é um 'ataque' do tipo street art, grafite ou é propaganda. Essas são as duas formas de 'arte' possíveis e por isso que é tão dificil brincar subversivamente na cidade, em um ambiente com tantos anúncios. Há muitos artistas que fazem esse tipo de experimento, em Nova Iorque e outras grandes cidades, mas é muito difícil trabalhar subversivamente com isso, pois mesmo que você faça algo totalmente diferente, as pessoas continuam achando que é propaganda, porque a propaganda já fez de tudo. É um campo muito difícil.


E. Ribeiro- Em seu livro Arqueologia da mídia, você fala sobre a relação da periferia com o centro. Observando os movimentos de gentrificação, noto que a comunidade artística, com frequência, preanunciam os bairros que sofrerão mudanças e serão destruídos pela especulação imobiliária. Quando que o dinheiro injetado em um bairro, por seus artistas emergentes, pode fazer mal àqueles moradores mais antigos?

Zielinski- A coisa mais importante quando falo da relação do centro com a periferia, se refere ao senso político, mas principalmente se refere ao indivíduo no mundo. Hoje, no mundo da arte, do jornalismo, do cinema e assim por diante, você sempre é seduzido pelo poder, para ganha-lo. Querem que você queira o poder e isso é bobagem, está errado. Nós não queremos e não precisamos atingir o poder. Pode parecer fácil, mas é extremamente difícil.

Há trinta anos, Joseph Beuys e outros ótimos artistas formavam um grupo político enorme e com uma influência considerável que também atingia o centro da sociedade. Eles, sem dúvida, traçaram várias mudanças na política, na cultura, mas, depois de oito anos, queriam ser parte do poder e começaram a entrar no governo e até assumir cargos no governo da Alemanha. Com os sociais-democratas, eles regraram a Alemanha por uns bons anos e se transformaram bastante através deste processo. É sobre isso que estou falando.

Quando eu estava no poder, era o diretor da Academia de Artes e podia fazer, mais ou menos, tudo o que eu quisesse, aprendi enormemente com um amigo que é um teórico do caos: “É mais fácil chegar na posição do poder, do que estar em uma posição de poder e não usar o poder.” No meu ponto de vista, isso é verdade, mas é lógico que isso não significa que você tem que ficar o tempo todo longe do poder. Na periferia, com frequência, a condição de vida é ruim, não só barata, mas ruim mesmo. Em um movimento social, por exemplo, temos que fazer esse movimento para o centro, mas é um movimento, não ficamos lá. Não queremos ocupar o centro, queremos passar pelo centro e é por isso que o influenciamos, através deste movimento. Claro que estamos alterando o centro, mas a gente não deve ficar lá. O centro não é o nosso lugar. Não existe solução quando a máfia Russa vem e domina uma parte de Berlim, não é a solução porque eles vão apenas substituir um poder pelo outro.

Especialmente no mundo da arte, essa é uma questão muito delicada, pois existem muitos artistas que querem ser poderosos, estarem no centro, influenciar e ficar lá com seus Rolls-Royce e suas dez casas. Eu conheço algumas pessoas assim e, para mim, isso não tem nada a ver com arte, tem a ver com mercado, consumo e muitas coisas, mas não arte.


E. Ribeiro- O Senhor poderia explicar-me o que seria exatamente a Economia dos Amigos?

Zielinski- A idéia básica desta Economia, não dos amigos, mas da Amizade, é a qualidade da relação que estou tentando salientar. Nas relações usuais, as pessoas trocam dinheiro, uma coisa pela outra. Na Economia da Amizade você troca aquilo - Eu tenho que ser muito preciso agora- aquilo que você não tem. Na Economia da Amizade, você não troca aquilo que tem, mas o que não tem. É muito fácil trocar aquilo que você tem. Por exemplo, um dos meus maiores problemas é tempo. Eu não tenho tempo, o tempo é que me tem. O que estou te dando agora é tempo, eu não tenho, mas te dou tempo. Isso é muito mais difícil do que te dar algo que eu tenho. Se eu sou rico para dar dinheiro para outras pessoas, sem problemas. Ora, isso não é um dom. Mas, se eu sou pobre e dou algo que eu não tenho, então sim, é um gesto muito generoso. Essa é a base da economia da amizade.

A Economia da Amizade é o oposto da idéia de produtividade e acúmulo que estão regrando a economia capitalista e era, também, a forma estabilizada de economia no comunismo. Quando digo estabilizada, me refiro a forma pela qual a economia funcionava na prática, socialmente na Rússia, RDA, etc. É uma estrutura muito poética, claro, mas tem a ver com fartura e desperdício, estes são termos[1] que aprendi com Georges Bataille, com os pensadores franceses que encabeçaram essas idéias. Eles não usaram essa nomenclatura, Economia da Amizade é um termo meu, mas acho que faz sentido. É a única economia confiável, pois depende em nada mais que na relação de atração e não de repulsão. Só funciona se existir uma atração, das duas parte, como uma relação pessoal e é absolutamente confiável porque não é um valor abstrato.

Recentemente, fiz uma conferência em Nápoles e eu só consegui reunir pessoas do mundo todo, baseado nesse tipo de economia. A outra alternativa seria eu ter cem mil dólares e pagar um monte de dinheiro para as pessoas, companhias aéreas, passagens, hotel etc. Eu não tenho cem mil dólares, eu tenho que confiar na Economia da Amizade e - por favor - isso não significa que o outro seja meu amigo, mas que há uma relação de atração. Significa que ele quer algo meu, eu quero algo dele é uma relação de troca na mesma altura dos olhos, igual. Uma troca no mesmo nível e isso que a amizade é.


E. Ribeiro- O crescimento da indústria criativa acontece com base neste tipo de economia?

Zielinski- Não, a maior parte da indústria criativa é estruturada em uma forma muito clássica de capitalismo. Não acredito que o uso desta prática explique o crescimento desse setor. Não há diferença na qualidade da indústria tradicional, comparada com a criativa. No passado, também existiam práticas econômicas de amizade nas indústrias tradicionais, e hoje ainda há, então isso não faz diferença.


E. Ribeiro- Sendo um estudioso da mídia, como o Senhor vê a utilização de imagens, em VJ sets, quando as pessoas não estão concentrando atenção no que está sendo passado e fazem várias coisas enquanto o vídeo é tocado?

Zielinski- Vjing não é necessariamente o fato de a pessoa estar dançando em um lugar com imagens. Vjing, para mim, é uma forma especial de trabalhar com time-based media, filme e vídeo. Você está alternando as estruturas de tempo existentes, brincando com elas, como o DJ faz na música. Isso não significa que você está arbitrariamente colocando imagens e todos dançam para todos os lados. Vjing é uma forma de arte, de criar estruturas de tempo, usando bases de tempo já existentes. Enquanto você toca algo, vai mudando os movimentos e essas estruturas de tempo.

Isso é parte da identidade midiática dos jovens de hoje. Você não vai ao cinema, assiste a um filme e, por duas horas, fica parado com uma mesma estrutura de tempo apenas. Você está brincando com tempo, está usando o seu material de vídeo, gravando e tocando. Significa que você não apenas está consumindo tempo, mas criando e interferindo nas estruturas de tempo. O vídeo foi a primeira máquina audiovisual do tempo nas mãos das pessoas do dia-a-dia, não só de profissionais. Desde que essas máquinas existem, pelos últimos trinta, quarenta anos, nós estamos permanentemente mudando o tempo.

Em 1985, escrevi um livro sobre a história do gravador de vídeo, foi a minha dissertação que acabou de ser republicada, 25 anos depois e do mesmo jeito. O livro é sobre essa mesma idéia da máquina audio-visual do tempo. O último capítulo se chama Audiovisual time machine - a cultural technique , uma técnica cultural do gravador de vídeo e significa que o tempo, objetivado em forma de filme, de vídeo, chegou nas nossas mãos, podemos brincar com ele, alterar, interferir, manipular - manipular é um termo estranho, pois sempre tem uma implicação negativa e não digo manipulação - mas podemos estruturar e reinventar o tempo, através das funções básicas desta técnica cultural; rec, rewind, forward, stop, fast forward, slow motion, still, play. Lógico que hoje temos outras opções muito mais sofisticadas e podemos, até mesmo, ir na estrutura da imagem, manipular pixels etc, mas isso é apenas o aprimoramento do que já podíamos fazer com o vídeo, há quarenta, trinta e cinco anos.


E. Ribeiro- O que o Senhor pensa sobre o uso de found footage nas práticas contemporâneas?

Zielinski- Sem o uso de found footage o mundo da arte seria muito mais pobre. Pegar algo do passado e interpretar, reinterpretar é um gesto muito importante para a Avant-Garde. O que eu não gosto muito é o que chamam hoje em dia de reenactment, ou apenas reconstruir coisas que já existiram no passado. Existe uma tendência na arte contemporânea em fazer isso e eu não gosto, é chato. Trabalhar com found footage, como no processo de vjing para mudar essas imagens, reorganizá-las e interpretá-las de um jeito diferente é, absolutamente, importante para os movimentos Avant-Garde e isso sempre foi assim. Podemos dizer que Avant-garde é nada mais do que interpretar o que tem acontecido de um jeito diferente. Avant-Garde e arqueologia, para mim, estão muito próximas uma da outra.

Os movimentos Avant-Garde não são absorvidos pelo sistema logo no início. Isso só acontece quando eles se movem na direção do sistema, não têm cuidado de manter a resistência em crescimento e se oferecem para serem sugados. Eu conheço alguns artistas que não fizeram o ‘pacto com o demônio’ e eles não estão pobres e morrendo porque não tiveram pão e vinho para beber. É um caminho difícil e que tem que ser escolhido. Os irmãos Quay, os gêmeos idênticos que fazem filme em Londres, são um ótimo exemplo disso. Nós somos muito amigos e eu os admiro muito, porque aos 63 anos eles conseguiram ser bastante verdadeiros em sua própria arte, ao longo das décadas, e não se venderam as suas almas.

E. Ribeiro- Com relação as mudanças ocorridas na forma que as pessoas trabalham, como o Senhor observa a atual proximidade entre o local de trabalho e o de lazer? Entre a casa e escritório?


Zielinski- Para mim, que sou professor, o tempo de trabalho e de lazer sempre andaram muito juntos. Quando sento para ler o jornal, de alguma forma estou trabalhando, mas também estou aproveitando do meu tempo de lazer, gosto de ler o jornal. A diferença é muito difícil de ser traçada, mas, para as pessoas do mundo cotidiano, se tornou muito precária, porque elas estão permanentemente trabalhando. Quando você passa dez horas no escritório, na frente do computador e, quando chega em casa, ainda vai checar e-mail, banco on-line, você também está trabalhando. Praticamente, não existe mais diferença.

É uma questão muito difícil, especialmente, quando você pergunta que parte do seu trabalho está sendo paga e que parte não está. Existem muitas pessoas trabalhando demais no computador e elas não estão sendo pagas, mas elas têm a impressão de que estão trabalhando. Tem um grupo enorme de pessoas que não tem emprego, mas elas sentam na frente do computador para terem a impressão de que estão trabalhando e que fazem parte do mundo. É uma questão bastante difícil e complexa.

Moro na Berlim Ocidental, em Charlottenburg, e quando estou voltando para casa de noite, gosto de observar as pessoas nas suas casas e pelas janelas vejo todas sentadas na frente dos computadores e parecem que estão trabalhando, mas o que elas estão fazendo ali? Eu não sei. Elas querem fazer parte do mundo, ser importantes, não serem negligenciadas e isso tem a ver com essa mudança entre tempo de lazer e de trabalho. Possivelmente, em vinte anos não vai mais haver essa diferença, estaremos apenas ali existindo, mas não distinguiremos entre essas duas formas de tempo; lazer ou trabalho.


[1] Lavishness e squandering esses foram os termos que o professor usou em inglês.