terça-feira, 30 de março de 2010

Exquisite Corpse

Quando um paredão, fire wall , fica virado para uma área que permite o acesso público, inúmeros artistas fazem trabalhos autorais e, com o tempo, novos elementos vão sendo adicionados e compondo uma nova imagem de forma acidental. É como a noção de uma obra de arte Exquisite Corpse; híbrida, de autoria coletiva e criada de forma aleatória onde cada artista adiciona um novo elemento que interage ou não com o resto deles, até podendo por fim a elementos já existentes e pintando algo por cima. É assim, também, com as intervenções feitas em anúncios publicitários que com a adição de elementos de grafite, tag e estêncil se transformam em algo singular e conseguem transitar para além do seu foco inicial que era a venda de um produto.




Existem também festivais de arte de rua que fazem a ponte entre os artistas e a comunidade local. Back jumps, Urban Grassroots: Panet Prozess e Urban Affairs são alguns exemplos deles e de como o grafite hoje é uma forma de expressão que não apenas se integra especificamente no local em que é produzido, mas como também, se impõe de

Intervenção visual


Independente de quem os custeiam, os paredões coloridos criam um diálogo com seu entorno, interferem na paisagem e até conseguem interagir com ela, como os que se utilizam das sombras formadas nas próprias paredes como um elemento integrante do mural. Victor Ash aqui, em dois trabalhos diferente, explora a sombra. Em Falling Graffiti Writers and trees ele brinca em nos confundir a paisagem e parece criar uma espécie de sombra que se mistura a sombras verdadeiras à noite. Em Astronaut / Cosmonaut a sombra real de um mastro com uma bandeira faz parecer que ela acabou de ser fincada ali e o seu movimento flamejante dá um certo movimento ao cosmonauta que parece levitar na gravidade . A obra em preto e branco chama bastante atenção e se for olhada fixamente por alguns segundos, devido ao seu alto contraste, tem aquele efeito ilusório de permanência na retina. Até os painéis quando são propagandas conseguem adornar a cidade e se comunicar com o cidadão, antes mesmo de evidenciar quem seria o seu “patrocinador”. Com a falta do domínio da língua e do repertório simbólico da cultura alemã, muitas vezes não consigo decifrar se um mural seria ou não uma propaganda. Na figura de número sete, apresento um mural encomendado pelo Mercury Hotel aos coletivo de artistas latinos Interbrigadas, a obra cobre uma área de 600 m2 e fica no caminho da linha dos metros U1 e U2. Os artistas foram direcionados para comporem algo caótico que juntasse todos os tempos e elementos referentes a Berlim, para que dessa forma as pessoas no metro pudessem ser surpreendidas a cada dia com algo que não haviam percebido antes. Este caminho, a propósito, é um dos mais explorados para essa prática. Mesmo em áreas mais afastadas do centro, nos subúrbios mais tradicionais, como por exemplo em Köpenick, é possível ver propagandas com essa mesma estética de rua.


Fire walls





Quando Berlim se estabiliza como a capital da Alemanha, acontece um boom na cidade e nos seus ‘novos’ bairros re-surgem mais estabilizados e estruturados também. É como se a geração dos Squatters tivesse ‘largado’ rebeldia de lado, conseguido amadurecer e prosperar como profissionais liberais que desenvolvem atividades criativas, pagam suas contas e também gostam e podem consumir. Um bom exemplo pode ser dado como o fato de Prenzlauer Berg ter a maior taxa de natalidade de toda a Europa.


Em Berlim, cada bairro tem a sua própria autonomia, cultura e suas peculiaridades. Por parte dos moradores, existe um pensamento bastante difundido em “ajudar o bairro a melhorar”, uma consciência em consumir nos estabelecimentos locais, em enfeitar jardins, paredes e frequentar praças e parques das vizinhanças as quais pertencem. Adornar o espaço público é uma característica marcante em ambos os lados da cidade. Em Novembro de 2009, a revista Piauí publicou um artigo no qual Tim Apmann dá um depoimento sobre sua vida na Alemanha Oriental dos anos 70 e trás um fato que pode ajudar um pouco a explicar a cultura dos murais, dos painéis nas laterais e fachadas dos prédios e a incorporação do grafite pela cidade: “Por lei, todo prédio novo era obrigado a alocar 3% de seu orçamento para a decoração de suas paredes externas. Como minha mãe tinha estudado pintura mural na escola de Belas-Artes, coube a ela dedicar-se a essa tarefa. Segundo a orientação do regime, a arte mural deveria exprimir a felicidade das pessoas que tinham a sorte de viver na parte socialista da Alemanha. Poderia também retratar a miséria dos que viviam na parte capitalista da Alemanha - cujo governo era manipulado pelos nazistas e pelos imperialistas americanos - onde não existia o direito ao emprego, à educação ou à habitação. Como eles sobreviviam, só Deus sabia! .”


Essa cultura, de certa forma, permanece e colore a cidade com murais de variados temas, mas sem a necessidade de uma lei. Por vezes, o estabelecimento comercial do térreo banca os custos e decide o que será pintado, como esse jardim da infância, no bairro de Kreuzberge, chamada de Caverna dos leões. As subprefeituras distritais também comissionam algumas produções, porém, o mais comum são os moradores se reunirem, dividirem os custos e decidirem por algo que lhes agrade e geralmente que passe uma mensagem. O tema da guerra é um dos mais abordados, mas as simples decorações com paisagem e natureza também se encontra em prédios com moradores mais conservadores.


"Berlin ist arm, aber sexy"


Depois de guerras, muro e decadência, parece que Berlim se encontrou. Na verdade, ela se reinventou e criou um estilo bastante próprio, inovador e que tem como base a sua eterna transformação. Essa inconstância não diz respeito apenas aos espaços físicos e o eterno canteiro de obra que a cidade é, mas em relação às suas próprias pessoas. Em 2005, a UNESCO elegeu Berlim como a Cidade do Design, considerando memoráveis os avanços sociais, econômicos e culturais promovidos, direta ou indiretamente, pela indústria do desing. Esse título não diz respeito unicamente ao desing, se refere ao emaranhado bens e serviços que fazem parte do que se tem chamado hoje de Economia Criativa e que movimenta vários profissionais liberais ciclicamente em várias partes do mundo.


Parece que essa tal ‘autenticidade’ Beliner reside no tempo e no espaço, todos parecem ter esses dois elementos de sobra por aqui. O custo de vida é um dos mais baixos da Europa e isso atrai muitos artistas que precisam justamente destes dois ingredientes para produzir. As pessoas se preocupam bastante com a qualidade de vida e isso diz respeito, também, em desenvolver atividades prazerosas e de se realizar profissionalmente. Por esse motivo, arranjam um emprego qualquer para pagar as contas e o resto do tempo fica livre para desenvolver seu próprio trabalho (arte) e se realizar pessoalmente neste âmbito, mesmo que não tenha um reconhecimento financeiro.


Em 2003, em uma entrevista coletiva, o então Prefeito Klaus Wowereit disse: "Berlin ist arm, aber sexy", recentemente, o governo lançou uma campanha com o mesmo slogan: Pobre, mas sexy. Essa frase traduz de forma muito simples a atmosfera da cidade; no geral, todos têm poder aquisitivo muito inferior aos de outras cidades da Alemanha, mas são pessoas sexys, não exatamente no sentido literal, mas são pessoas atraentes, interessantes, divertidas, criativas e autênticas.

Berlinenses da gema




Aqui segue uma foto ilustrativa do site do ACUD. Na parte superior, encontram-se as abas referentes a cada atividade desenvolvida pelo grupo, logo abaixo, segue o poster de uma série de concertos programados para esta temporada. Chama a atenção o enfoque dado ao evento; “as bandas verdadeiramente berlinenses” e a atualidade da cena, “novas bandas e público”. Com um pouco mais de tempo na cidade, dá para perceber uma constante concorrência entre o que seria ‘realmente’ Berliner e aquilo que se diz ser e não é. É como se todos que estivessem aqui há, pelo menos 15 anos, quisesse ter um ‘crachá’, um uniforme que o diferenciasse e provasse que ele é morador local autêntico e, por isso, ter mais credibilidade no que diz.


É difícil tentar classificar as coisas nesse patamar de ‘autenticidade’. Principalmente no contexto berlinense, onde a parte Leste, totalmente devastada e abandona, teve que ser extremamente aberta àqueles que nela se dispusessem a trabalhar e a fazê-la crescer. Essas pessoas vieram de todas cidades da Alemanha, de países do antigo bloco socialista e vários outros da Europa.

Outro fato interessante e que contribuiu para a formação do perfil da cidade e o seu espírito libertário de hoje, é que a Berlim Ocidental atraiu muitos jovens de outras cidades alemãs do Ocidente por não ter serviço militar obrigatório. Percebe-se então que a ‘autenticidade’ está muito mais ligada em estar em sincronia com a cidade; em desenvolver atividades que consigam se encaixar em seus espaços improvisados, em conseguir criar suas próprias redes para trabalhar e sobreviver, do que o fato de ter nascido aqui ou estar aqui há mais de 15 anos.

sexta-feira, 26 de março de 2010

PassadoS e Futuro






Berlim vive hoje entre dois projetos de futuro. O primeiro segue a trajetória de todas as outras grandes metrópoles europeias, em que a cidade de torna um museu ao ar livre, um grande centro de entretenimento guiado pelas regras da indústria do turismo e do mercado, principalmente as do mercado imobiliário. Este expulsa seus moradores locais e, consequentemente, faz com que bens e serviços sejam explorados sem qualquer controle. O Realstate não simplesmente expulsa os moradores locais, como também vai empurrando a periferia para lugares cada vez mais afastados do centro e vai invadindo-a, de forma a transformá-la em novos centros.


O Segundo projeto de futuro fica por conta da história singular desta cidade, marcada por dois passados antagônicos, totalmente diferentes e que se complementam tão bem. Foram, justamente, as pessoas da Alemanha Ocidental que fizeram os primeiros Squats, antes mesmo do muro cair. Na década de 70, em Frankfurt, moradores protestaram contra um projeto do governo de renovar antigos prédios residenciais e transformar em escritórios comerciais. As pessoas do Leste tinham moradia, emprego e educação garantida, mas os espaços para as atividades culturais locais eram regulados pela Stasi (polícia secreta da Alemanha Oriental), daí a necessidade de espaços para criação livre e para o desenvolvimento da subcultura que ia contra o governo da República Democrática Alemã.

Então, logo após a queda do muro, quando anarquistas, punks, artistas e afins correram para ocupar os lugares abandonados da Berlim Oriental, nos bairros de Prenzlauer Berg, Mitte e Friedrichshain, ouve uma fusão entre pessoas que carregavam o seu passado Oriental e as que carregavam um Ocidental. Provavelmente, esse grupo foi o que mais rápido teve que se adaptar às diferenças culturais e que mais cedo também conseguiu superá-las. A herança comunista marcou a cidade e seus moradores com uma forma bastante diferente de agir no espaço público e na esfera social e os Squats, com a sua proposta de vida alternativa e de resistência, casava muito bem com as ideologias jovens tanto da jovem Berlim Oriental, quanto da Ocidental. É esse mix, justamente, essa comunhão de atitudes que se mostra como resistência e dá a esperança de Berlim conseguir trilhar um f
uturo menos previsível e mais criativo que as outras capitais europeias.


Muita coisa mudou desde a queda do muro, a maioria dos Squats se acabou e teve moradores expulsos de seus prédios. Alguns desses espaços resistiram, tiveram uma maior mobilização, se organizaram e conseguiram juntar dinheiro suficiente para comprar as construções as quais habitavam. Em 20 anos, Prenzlauer Berg e Mitte conseguiram se transformar nos bairros da moda, e consequentemente, bem mais caros do que eram. Hoje ainda existem prédios chamados de Squats em Berlim, mas em todos eles existem acordos entre os proprietários e os moradores, de forma que existe um aluguel pago mensalmente,
mesmo que ele seja bastante reduzido e fora dos valores de mercado.


A partir do momento que os Squatters conseguem comprar a sua moradia, cada um vai explorá-la da maneira que mais lhe for conveniente. Ainda seguindo a lógica do sistema comunal, ateliês, bares, cafés, lojas, livrarias, restaurantes, galerias e demais atividades exercidas pelos seus moradores convivem harmonicamente e se ajudam mutuamente. Esse tipo de contexto faz muita diferença para a cidade, mesmo tendo sido incorporados pelo sistema, a história dos Squats e o seu compromisso com a cultura local permanece bastante presente.


Uma coisa curiosa de se observar, é a quantidade de lugares com noites de Open Mic ou também chamadas Jam Session: Performers e músicos (anônimos ou não) podem subir no palco, apresentar seu talento, se expor de forma despretensiosa e ampliar sua rede de contatos e parcerias. Muitos desses lugares foram Squats no passado, como por exemplo o ACUD Session Café que fica localizado no complexo cultural ACUD, em Mitte. As segundas, terças e quartas são dedicadas às experimentações musicais. No ACUD existe ainda um cinema, um teatro, uma cantina (biergarten), uma galleria e um club. Eram dois, mas o Mädchenclub fechou no final de 2009, depois de 13 anos, por cortes da subprefeitura de Mitte.

Relatório Berlim



Em 2009, foi o vigésimo aniversário da queda do muro que separava as duas Alemanhas; Oriental e Ocidental. Na capital Alemã, por toda parte aconteceram seminários, palestras, concertos e eventos que abordavam a reunificação e as mudanças desde então. Como Berlim consegue digerir dois passados tão diferentes e seguir sua própria história? Esta parece ser a questão que mais intriga seus moradores, principalmente, aqueles que adotaram a cidade, advindo de outros países. No campo das artes, o diálogo é travado a cerca do constante processo de transformação pelo qual a cidade passa e para onde essas transformações estariam levando Berlim.


A área fronteiriça entre o lado Oeste e Leste, onde ficava os postos de controle de entrada e saída de pessoas e que se caracterizava por ser um grande descampado, hoje é ocupada por grandes centros de compras, negócios e representa, ao máximo, a cultura ocidental americanizada, com todas as suas grandes corporações. Na parte Oriental, logo após a queda do muro, e já até mesmo antes dela, um mix de artistas, ativistas e simplesmente sem-teto ocupavam construções e espaços industriais abandonados. No final da década de 80, o movimento Punk já havia se solidificado e prédios bombardeados, em ruínas, serviam de palco para grupos musicais, companhias de teatros, espetáculos de Ópera Rock e para tantas outras atividades culturais que de alguma forma se autofinanciavam e se mantinham a muito baixo custo.


Nas décadas de 70 e 80 projetos alternativos de vida foram iniciados em várias cidades Alemãs, principalmente nas cidades do Oeste. A princípio, esses espaços apenas protestavam contra a falta de moradia acessível e o direito à habitação, mas o que começou como um protesto político, acabou se tornando uma demonstração de mobilização social, civil e exemplo de que essas alternativas podem dar certo como organizações culturais e agentes de conscientização política. O binômio trabalho e moradia habitava um só lugar, uma só filosofia de vida, um mesmo projeto que iria de encontro às regras de mercado e tentaria ser uma alternativa ao sistema em vigor e se tornaria foco de resistência. Esses lugares foram batizados de Squats.


Há vários motivos para tentar explicar historicamente o porquê de Berlim ter se tornado uma cidade tão singular e ser referência para as expressões artísticas das ruas, refiro-me não só ao grafite, ao tag e ao estêncil, mas a todo tipo de ação que se utiliza da cidade como um playground e faz do cidadão um ser ativo, participante, um jogador. A estética contemporânea tão marcante das ruas de Berlim está ligada não somente ao seu passado, mas principalmente ao seu futuro. Qual o amanhã que Berlim quer? E o que ela não quer?